A Época traz entrevista com a deputada federal Maria do Rosário (PT-RS) sobre a repercussão da decisão do Supremo sobre o caso de Zequinha Barbosa e seu empresário. Foram absolvidos mesmo tendo "comprado" sexo com meninas abaixo da idade de consentimento. Uma amiga - que não é feminista - mas é advogada, disse que o erro foi processual e que o Supremo legislou corretamente. Eu, que sou leiga, concordo com a deputada e sinto medo do que tal precedente jurídico possa gera. Já o título do post veio deste blog aqui.
A deputada federal Maria do Rosário diz que a absolvição do corredor Zequinha Barbosa, acusado de crime sexual contra menores, é um retrocesso
Ruth de Aquino
No Brasil, fazer sexo com crianças e adolescentes não é crime, desde que elas já tenham sido prostituídas e que o cliente pague um punhado de reais. Essa é a visão do Superior Tribunal de Justiça, que absolveu no dia 17 de junho Zequinha Barbosa (campeão mundial em 1987 na corrida de 800 metros rasos) e seu ex-assessor Luiz Otávio Flores da Anunciação. Em 2003, eles pegaram em um ponto de ônibus em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, duas adolescentes de 12 e 13 anos. Fizeram sexo com elas no motel, fotografaram as duas nuas e pagaram R$ 80. O STJ confirmou assim a sentença de um tribunal de Mato Grosso do Sul de 2006. O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) repudiou o desfecho em nota pública na semana passada. O Ministério Público de Mato Grosso do Sul recorrerá ao Supremo Tribunal Federal. Em entrevista a ÉPOCA, Maria do Rosário Nunes, relatora da CPI do Congresso sobre exploração sexual infantil, afirmou que a sentença contraria o Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990 e a Constituição de 1988.
ENTREVISTA - MARIA DO ROSÁRIO
QUEM É
Deputada federal (PT-RS), está no segundo mandato. Foi professora da rede pública e é especialista em violência doméstica pela USP. Fez mestrado sobre educação e sexualidade na UFRGS. É vice-presidente nacional do PT
O QUE FEZ
Foi vereadora em Porto Alegre e deputada estadual. Sempre fez parte das comissões parlamentares de educação e direitos humanos. Ela coordena a Frente Parlamentar de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente
ÉPOCA – O que a senhora achou da decisão do STJ?
Maria do Rosário – Aviltante, porque nega a essas meninas o direito de crescer com um mínimo de dignidade, apenas por já terem sido vítimas de exploração sexual anterior. O que está em jogo não é a virgindade nem se eles foram os primeiros a explorar as duas. Esse foi um caso claro de abuso de poder físico e econômico de dois homens adultos sobre o corpo das meninas. A absolvição abre um precedente perigoso: ao absolver os “clientes”, é como se as meninas pobres e exploradas sexualmente não estivessem cobertas por nenhuma lei, como se não fossem nem mais crianças ou adolescentes, mesmo com menos de 14 anos. Uma sentença assim estimula o turismo sexual infantil no Brasil.
ÉPOCA – Por que foi aberta uma CPI em 2003 e quais foram os resultados?
Maria do Rosário – Uma pesquisa nacional realizada de 2000 a 2002 identificou 240 rotas de tráfico sexual de crianças e mulheres no Brasil. Rotas domésticas e internacionais. Meninas oferecidas em estradas, em hotéis e em cursos de modelo por redes criminosas envolvendo advogados, políticos e personalidades. Com base nessa pesquisa, abrimos uma CPI, investigamos durante um ano a situação em 22 Estados. E encontramos essas duas meninas em Mato Grosso do Sul. Uma delas tinha sido oferecida pela própria mãe ao amante, um vereador conhecido, antes de se prostituir. O vereador fora absolvido por crimes semelhantes. A mãe da outra queria que ela abandonasse essa vida. Outras meninas já tinham sido traficadas para o Paraguai. Trocavam sexo por drogas. Adquiriam dívidas e não conseguiam voltar. As duas meninas só deram os nomes de Zequinha e Luiz Otávio porque, segundo elas, foram humilhadas e agredidas por eles. Criamos cinco projetos de lei. Um deles está paralisado no Senado. Propõe uma reforma que tire dos juízes a possibilidade de julgar uma menina ou um menino por sua classe social ou compleição física.
ÉPOCA – Há quem diga que os juízes não poderiam processar Zequinha e seu amigo por corrupção de menores porque elas já haviam sido corrompidas antes.
Maria do Rosário – Nossa legislação mudou muito nas duas últimas décadas. Ainda assim, o Código Penal trata o crime sexual como crime contra os costumes e tem uma visão distorcida da vítima. Mas já está superado o conceito de “mulher honesta” como condição para ter a proteção da lei. Isso acabou. Para absolver esses réus, os juízes do STJ usaram a doutrina anterior a nossa Constituição de 1988. Com isso, condenam essas meninas à exploração institucionalizada e colocam a violência sexual sob o manto do segredo, tanto na vida familiar quanto social. O crime fica invisível ao olhar acostumado da sociedade, estimulado pelas autoridades que deveriam assegurar os direitos das vítimas.
ÉPOCA – Como avançar na lei para evitar brechas e omissões?
Maria do Rosário – Em nosso projeto parado no Senado, dizemos que toda abordagem sexual de menores de 14 anos deve ser punida como crime. Estamos acabando com a distinção entre estupro e atentado violento ao pudor. No Brasil, atualmente, só existe estupro quando se consuma um ato vaginal completo. Qualquer outro tipo de sexo – oral, anal – não seria estupro, e, por isso, meninos não seriam vítimas. Mesmo que a pena possa ser igual nos dois delitos, a sociedade entende o atentado ao pudor como um crime menor.
“A absolvição abre um precedente perigoso. É como se as meninas pobres e exploradas sexualmente não estivessem cobertas por nenhuma lei”
ÉPOCA – Depois da CPI, o que aconteceu de concreto?
Maria do Rosário – Em dois anos de investigação, denunciamos 250 pessoas por atentado ao pudor e exploração sexual a crianças e adolescentes. Menos de 10% das denúncias chegaram a tribunais. O caso de Zequinha chegou ao STJ, mas a sentença é, para nós, uma surpresa e uma aberração. Imaginava que nossos juízes estivessem mais sintonizados com as reformas legais desde 1988. Cobro do Judiciário, mas sei que o Parlamento também precisa fazer sua parte e tornar nossas leis ainda mais claras. Não podemos é continuar assistindo de braços cruzados a esses voos charter que vêm da Europa somente com passageiros homens, atraídos por pacotes alinhavados com turismo sexual. Isso existe muito no Pantanal, assim como em muitos outros lugares do Brasil, além do Nordeste. Meninas novinhas são as mais caras – logo ficam depreciadas no mercado. Nas fronteiras do Brasil, existem filiais de cada lado com redes criminosas de hotéis, turismo e cafetões.
ÉPOCA – Algum projeto de lei criado pela CPI vingou?
Maria do Rosário – O que obriga todos os hotéis e estabelecimentos de diversão a exibir uma placa dizendo que exploração sexual de crianças é crime, com um número nacional de denúncia: 100.
ÉPOCA – O que, a seu ver, poderia ter levado o STJ a absolver os réus?
Maria do Rosário – Não pretendo dar argumentos aos juízes e irei aos ministros do Supremo antes de recorrer aos organismos internacionais. Mas acho que a decisão do STJ reflete algo terrível em nossa sociedade. A maneira dúbia com que se encaram hoje nossas crianças. Numa hora, é a criança anjo, sem sexo, desprovida de qualquer desejo. Outra hora, é um ser diabólico e provocador, a menina vista como ninfeta. A sociedade contemporânea tem misturado a sexualidade de adultos e crianças. O corpo jovem tem sido valorizado sexualmente além dos limites aceitáveis. Modelos são obrigadas a se enquadrar num corpo esquálido e quase infantil, manequim 36. Revistas masculinas associam a nudez de mulheres ao universo infantil, com ursinhos de pelúcia, uniforme de colegial, quartos de adolescentes. Os juízes acabam agindo como peça de uma engrenagem que subtrai a infância.
"A sentença do STJ é uma aberração"
A deputada federal Maria do Rosário diz que a absolvição do corredor Zequinha Barbosa, acusado de crime sexual contra menores, é um retrocesso
Ruth de Aquino
No Brasil, fazer sexo com crianças e adolescentes não é crime, desde que elas já tenham sido prostituídas e que o cliente pague um punhado de reais. Essa é a visão do Superior Tribunal de Justiça, que absolveu no dia 17 de junho Zequinha Barbosa (campeão mundial em 1987 na corrida de 800 metros rasos) e seu ex-assessor Luiz Otávio Flores da Anunciação. Em 2003, eles pegaram em um ponto de ônibus em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, duas adolescentes de 12 e 13 anos. Fizeram sexo com elas no motel, fotografaram as duas nuas e pagaram R$ 80. O STJ confirmou assim a sentença de um tribunal de Mato Grosso do Sul de 2006. O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) repudiou o desfecho em nota pública na semana passada. O Ministério Público de Mato Grosso do Sul recorrerá ao Supremo Tribunal Federal. Em entrevista a ÉPOCA, Maria do Rosário Nunes, relatora da CPI do Congresso sobre exploração sexual infantil, afirmou que a sentença contraria o Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990 e a Constituição de 1988.
ENTREVISTA - MARIA DO ROSÁRIO
QUEM É
Deputada federal (PT-RS), está no segundo mandato. Foi professora da rede pública e é especialista em violência doméstica pela USP. Fez mestrado sobre educação e sexualidade na UFRGS. É vice-presidente nacional do PT
O QUE FEZ
Foi vereadora em Porto Alegre e deputada estadual. Sempre fez parte das comissões parlamentares de educação e direitos humanos. Ela coordena a Frente Parlamentar de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente
ÉPOCA – O que a senhora achou da decisão do STJ?
Maria do Rosário – Aviltante, porque nega a essas meninas o direito de crescer com um mínimo de dignidade, apenas por já terem sido vítimas de exploração sexual anterior. O que está em jogo não é a virgindade nem se eles foram os primeiros a explorar as duas. Esse foi um caso claro de abuso de poder físico e econômico de dois homens adultos sobre o corpo das meninas. A absolvição abre um precedente perigoso: ao absolver os “clientes”, é como se as meninas pobres e exploradas sexualmente não estivessem cobertas por nenhuma lei, como se não fossem nem mais crianças ou adolescentes, mesmo com menos de 14 anos. Uma sentença assim estimula o turismo sexual infantil no Brasil.
ÉPOCA – Por que foi aberta uma CPI em 2003 e quais foram os resultados?
Maria do Rosário – Uma pesquisa nacional realizada de 2000 a 2002 identificou 240 rotas de tráfico sexual de crianças e mulheres no Brasil. Rotas domésticas e internacionais. Meninas oferecidas em estradas, em hotéis e em cursos de modelo por redes criminosas envolvendo advogados, políticos e personalidades. Com base nessa pesquisa, abrimos uma CPI, investigamos durante um ano a situação em 22 Estados. E encontramos essas duas meninas em Mato Grosso do Sul. Uma delas tinha sido oferecida pela própria mãe ao amante, um vereador conhecido, antes de se prostituir. O vereador fora absolvido por crimes semelhantes. A mãe da outra queria que ela abandonasse essa vida. Outras meninas já tinham sido traficadas para o Paraguai. Trocavam sexo por drogas. Adquiriam dívidas e não conseguiam voltar. As duas meninas só deram os nomes de Zequinha e Luiz Otávio porque, segundo elas, foram humilhadas e agredidas por eles. Criamos cinco projetos de lei. Um deles está paralisado no Senado. Propõe uma reforma que tire dos juízes a possibilidade de julgar uma menina ou um menino por sua classe social ou compleição física.
ÉPOCA – Há quem diga que os juízes não poderiam processar Zequinha e seu amigo por corrupção de menores porque elas já haviam sido corrompidas antes.
Maria do Rosário – Nossa legislação mudou muito nas duas últimas décadas. Ainda assim, o Código Penal trata o crime sexual como crime contra os costumes e tem uma visão distorcida da vítima. Mas já está superado o conceito de “mulher honesta” como condição para ter a proteção da lei. Isso acabou. Para absolver esses réus, os juízes do STJ usaram a doutrina anterior a nossa Constituição de 1988. Com isso, condenam essas meninas à exploração institucionalizada e colocam a violência sexual sob o manto do segredo, tanto na vida familiar quanto social. O crime fica invisível ao olhar acostumado da sociedade, estimulado pelas autoridades que deveriam assegurar os direitos das vítimas.
ÉPOCA – Como avançar na lei para evitar brechas e omissões?
Maria do Rosário – Em nosso projeto parado no Senado, dizemos que toda abordagem sexual de menores de 14 anos deve ser punida como crime. Estamos acabando com a distinção entre estupro e atentado violento ao pudor. No Brasil, atualmente, só existe estupro quando se consuma um ato vaginal completo. Qualquer outro tipo de sexo – oral, anal – não seria estupro, e, por isso, meninos não seriam vítimas. Mesmo que a pena possa ser igual nos dois delitos, a sociedade entende o atentado ao pudor como um crime menor.
“A absolvição abre um precedente perigoso. É como se as meninas pobres e exploradas sexualmente não estivessem cobertas por nenhuma lei”
ÉPOCA – Depois da CPI, o que aconteceu de concreto?
Maria do Rosário – Em dois anos de investigação, denunciamos 250 pessoas por atentado ao pudor e exploração sexual a crianças e adolescentes. Menos de 10% das denúncias chegaram a tribunais. O caso de Zequinha chegou ao STJ, mas a sentença é, para nós, uma surpresa e uma aberração. Imaginava que nossos juízes estivessem mais sintonizados com as reformas legais desde 1988. Cobro do Judiciário, mas sei que o Parlamento também precisa fazer sua parte e tornar nossas leis ainda mais claras. Não podemos é continuar assistindo de braços cruzados a esses voos charter que vêm da Europa somente com passageiros homens, atraídos por pacotes alinhavados com turismo sexual. Isso existe muito no Pantanal, assim como em muitos outros lugares do Brasil, além do Nordeste. Meninas novinhas são as mais caras – logo ficam depreciadas no mercado. Nas fronteiras do Brasil, existem filiais de cada lado com redes criminosas de hotéis, turismo e cafetões.
ÉPOCA – Algum projeto de lei criado pela CPI vingou?
Maria do Rosário – O que obriga todos os hotéis e estabelecimentos de diversão a exibir uma placa dizendo que exploração sexual de crianças é crime, com um número nacional de denúncia: 100.
ÉPOCA – O que, a seu ver, poderia ter levado o STJ a absolver os réus?
Maria do Rosário – Não pretendo dar argumentos aos juízes e irei aos ministros do Supremo antes de recorrer aos organismos internacionais. Mas acho que a decisão do STJ reflete algo terrível em nossa sociedade. A maneira dúbia com que se encaram hoje nossas crianças. Numa hora, é a criança anjo, sem sexo, desprovida de qualquer desejo. Outra hora, é um ser diabólico e provocador, a menina vista como ninfeta. A sociedade contemporânea tem misturado a sexualidade de adultos e crianças. O corpo jovem tem sido valorizado sexualmente além dos limites aceitáveis. Modelos são obrigadas a se enquadrar num corpo esquálido e quase infantil, manequim 36. Revistas masculinas associam a nudez de mulheres ao universo infantil, com ursinhos de pelúcia, uniforme de colegial, quartos de adolescentes. Os juízes acabam agindo como peça de uma engrenagem que subtrai a infância.
Isso é um absurdo! Realmente um retrocesso! Espero que a decisão mude quando for pro Supremo Tribunal Federal... Valéria, acho que já li um comentário seu de que não vê CQC... Mas queria que você desse uma olhada nesse vídeo do quadro Controle de Qualidade com alguns deputados federais a respeito da Lei Maria da Penha. http://www.youtube.com/watch?v=HuRoEbvmUQM Abraços.
ResponderExcluirLi sobre isso e achei um absurdo. Mas não é de admirar que os ministros do Supremo, um órgão que tem como seu presidente um "coronel" - e todos nós sabemos como essa gente pensa e age - tenha emitido tal sentença. Mesmo que no processo existissem erros, penso que para ser um magistrado e exercer a advocacia há que se ter senso de justiça e buscar argumentos e brechas na lei para que injustiças não sejam praticadas e para que verdadeiros monstros não saiam livres, sem nenhuma punição para seus crimes.
ResponderExcluirEu acho que o pouco caso com que o sistema de justiça e mesmo a sociedade trataram o caso são exemplos de como a questão da pedofilia é confusa e mal resolvida e envolve também questões de classe. Não eram crianças de classe média, de "boa família" que sofriam abusos, mas sim crianças pobres, talvez miseráveis com uma vida desestruturada, ou seja "crianças perdidas", que foram aliciadas. Esse é o tipo de raciocínio de muita gente.