05/08/2010

Direitos humanos e diplomacia nuclear devem andar juntos, diz Nobel da Paz


Para o Brasil de Lula, parece que, não é. Se bem que nenhum país tem gritado para a Arábia Saudita (onde a cidadania feminina é piada) ou para a China (2ª economia do mundo) ou Israel. Obviamente, isso não desculpa Lula, mas ajuda a compor um quadro de hipocrisia mundial que nossos jornais tendem a ignorar. É como se fosse problema somente do governo brasileiro, e deste especialmente, e não uma prática corrente. A diferença é que o Irã é inimigo dos EUA. Não pensem que eu estou relevando a execução, não é isso, ou a covardia e atraso do governo brasileiro em se posicionar, especialmente quando parece ter acesso privilegiado aos governantes do Irã, mas é preciso pontuar essas questões também. Espero que ainda seja possível reverter a questão. O artigo veio do site da Folha de São Paulo.

Direitos humanos e diplomacia nuclear devem andar juntos, diz Nobel da Paz

SHIRIN EBADI, ativista de direitos humanos e primeira mulher muçulmana a receber o Nobel da Paz, analisa as relações entre Brasil e Irã.

O angustiante caso de Sakineh Mohammadi Ashtiani, mãe de dois filhos que um tribunal iraniano sentenciou à morte por apedrejamento em um caso de adultério, atraiu merecida atenção mundial ao draconiano código penal do Irã, que reserva suas mais cruéis punições às mulheres. A prática do apedrejamento, especialmente, é tão repulsiva que até mesmo aliados políticos como o Brasil se sentiram compelidos a agir.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva ofereceu asilo a Ashtiani, no final de semana, por meio de um apelo direto ao presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad. O Irã ainda não respondeu formalmente, e um líder estrangeiro não tem influência direta sobre um processo judicial interno. Mas a intervenção brasileira envia uma mensagem poderosa à República islâmica: seu histórico de direitos humanos não poderá ser separado de sua diplomacia nuclear.

Antes da Revolução Islâmica de 1979, nos anos em que eu trabalhava como juíza no Irã, relações sexuais consensuais entre adultos não constavam do código penal. A revolução impôs uma versão da lei islâmica extraordinariamente rigorosa até mesmo pelos padrões dos países muçulmanos, tornando o sexo extraconjugal crime passível de punição legal. Sob o código penal revolucionário, a punição para homem ou mulher solteiros que pratiquem sexo extraconjugal passou a ser de cem chibatadas; e o artigo 86 dispõe que uma pessoa casada culpada de adultério seja morta por apedrejamento.

À primeira vista, o apedrejamento não é punição aplicada de acordo com o sexo da pessoa envolvida, pois a lei estipula que homens adúlteros enfrentem o mesmo fim brutal. Mas porque a lei iraniana permite a poligamia, na prática oferece aos homens uma rota de fuga: eles podem alegar que sua relação adúltera constituía na verdade um casamento temporário (a lei iraniana reconhece 'casamentos' de apenas algumas horas de duração, entre homens e mulheres solteiras). Os homens em geral aproveitam essa cláusula de escape, e são raramente sentenciados à morte por apedrejamento. Mas as mulheres casadas acusadas de adultério não têm direito a essa exceção.

Mesmo desconsiderada a barbárie do apedrejamento, os códigos leais do Irã estão repletos de incoerências e indefinições que tornam impossível respeitar os princípios do direito. O código aponta que se um homem ou mulher tiver negado o acesso sexual a seu cônjuge devido a viagens ou outras formas prolongadas de separação, cem chibatadas bastam como punição por adultério, mas a duração dessa separação aceitável não é definida.

O apedrejamento também pode ser comutado a por uma sentença de punição com chibatadas nos casos em que uma mulher casada faça sexo com um menor de idade (a lei iraniana define a idade de maturidade sexual como nove anos para as meninas e 15 para os meninos). Em termos reais, isso significa que uma mulher casada que cometa adultério com um homem de 40 anos de idade deve ser sentenciada à morte por apedrejamento, mas caso cometa o mesmo ato com um menino de 15 anos --ou seja, explore sexualmente um menor de idade--, tem o direito a uma sentença mais branda.

O processo criminal por adultério e a promulgação da sentença de morte por apedrejamento não requerem nem mesmo que exista um queixoso pessoal; se for possível provar que um homem ou mulher cometeu adultério, mesmo que o cônjuge o perdoe, o transgressor deve ser executado por apedrejamento. O artigo 105 permite que um juiz sentencie uma adúltera com base apenas na queixa de seu marido.

Esses lapsos gritantes são apenas os mais visíveis dos motivos por que o Irã precise reconsiderar sua prática de uma punição tão antiquada que a maioria dos países islâmicos há muito descartaram em seu esforço de harmonizar o islamismo às normas modernas.

O apedrejamento vem sendo criticado há muito por diversos juristas islâmicos, mais notavelmente o aiatolá Yousef Saanei. Esses juristas acreditam que uma punição dessa ordem era aplicada nos dias iniciais do advento do islamismo, no século 7º, no deserto da Arábia Saudita, de acordo com os costumes então vigentes. Apontam que o Corão não menciona apedrejamento e acreditam que punições mais amenas, como multas ou prisão, podem ser consideradas.

Advogados, ativistas dos direitos humanos e juristas condenam a prática do apedrejamento desde que esta foi adotada no sistema de Justiça criminal da República Islâmica. Infelizmente, a República Islâmica do Irã se manteve indiferente aos seus protestos. Talvez agora, diante das críticas de um poderoso aliado como o Brasil, Teerã se veja forçada a considerar se sua adesão a esse tipo de prática de fato serve aos interesses nacionais.

Para evitar os protestos internacionais que os casos de apedrejamento em geral suscitam, o governo se abstém de anunciar publicamente os veredictos de execução por apedrejamento. É apenas lentamente, por meio de informações passadas de boca em boca por familiares e advogados, que os casos chegam ao conhecimento da mídia. Por isso, nem mesmo sabemos exatamente quantos iranianos receberam essa punição nas três últimas décadas.

Há 18 meses, a mídia iraniana reportou que um homem havia sido executado por apedrejamento na cidade de Qazvin. E agora, uma mulher chamada Sakineh Ashtiani enfrenta a possibilidade de um destino semelhante. Além disso, há outras pessoas que podem estar na mesma situação sem que ninguém saiba.


Tradução de PAULO MIGLIACCI

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