30/11/2016

"(...) a mulher que suporta o ônus integral da gravidez": comentando a decisão histórica do STF em relação ao aborto no Brasil



No meio de tantas notícias ruins, a PEC 55 passou de lavada no Senado, as dez medidas contra a corrupção foram desfiguradas na Câmara, apareceu uma luzinha no fim do túnel.  Bom enfatizar "luzinha", porque muita gente acordou acreditando que o aborto até os três meses de gestação (*12 semanas*) está liberado no Brasil.  Vamos por partes...

Ontem, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que que são inconstitucionais os artigos do Código Penal que criminalizam o aborto até a terceira semana de gravidez.  No entanto, esta decisão só se aplica diretamente ao caso dos médicos presos em 2013 em uma clínica de abortos de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro.  Os médicos e funcionários (*até uma faxineira foi presa*) já estavam soltos desde 2014 por liminar concedida pelo ministro Marco Aurélio de Mello.  Este mesmo ministro teve papel fundamental na descriminalização (*ou despenalização, segundo algumas leituras*) do aborto em caso de anencefalia.  Para ele, não havia razão para manutenção da prisão preventiva dos profissionais.  Concordo com ele.


O caso continuou no Congresso e, desta vez, coube ao ministro Luís Roberto Barroso dar o voto histórico e resumir bem a situação desesperadora de muitas mulheres, a discriminação que sofremos, já que não somos sequer donas de nossos corpos, e tudo mais que a criminalização do aborto produz.  Como a Carta Capital postou vários trechos do voto do ministro, a leitura será longa.  Devo dar ênfase a alguns pontos:
Autonomia da mulher

Como pode o Estado – isto é, um delegado de polícia, um promotor de justiça ou um juiz de direito – impor a uma mulher, nas semanas iniciais da gestação, que a leve a termo, como se tratasse de um útero a serviço da sociedade, e não de uma pessoa autônoma, no gozo de plena capacidade de ser, pensar e viver a própria vida?”

Integridade física e psíquica

“A integridade física é abalada porque é o corpo da mulher que sofrerá as transformações, riscos e consequências da gestação. Aquilo que pode ser uma bênção quando se cuide de uma gravidez desejada, transmuda-se em tormento quando indesejada.”  (...) “A integridade psíquica, por sua vez, é afetada pela assunção de uma obrigação para toda a vida, exigindo renúncia, dedicação e comprometimento profundo com outro ser. Também aqui, o que seria uma bênção se decorresse de vontade própria, pode se transformar em provação quando decorra de uma imposição heterônoma. Ter um filho por determinação do direito penal constitui grave violação à integridade física e psíquica de uma mulher.

Igualdade de gênero

A histórica posição de subordinação das mulheres em relação aos homens institucionalizou a desigualdade socioeconômica entre os gêneros e promoveu visões excludentes, discriminatórias e estereotipadas da identidade feminina e do seu papel social. Há, por exemplo, uma visão idealizada em torno da experiência da maternidade, que, na prática, pode constituir um fardo para algumas mulheres.” (...) “Na medida em que é a mulher que suporta o ônus integral da gravidez, e que o homem não engravida, somente haverá igualdade plena se a ela for reconhecido o direito de decidir acerca da sua manutenção ou não.”

Direitos sexuais e reprodutivos

O direito das mulheres a uma vida sexual ativa e prazerosa, como se reconhece à condição masculina, ainda é objeto de tabus, discriminações e preconceitos. Parte dessas disfunções é fundamentada historicamente no papel que a natureza reservou às mulheres no processo reprodutivo. Mas justamente porque à mulher cabe o ônus da gravidez, sua vontade e seus direitos devem ser protegidos com maior intensidade.

Discriminação social

"Por meio da criminalização, o Estado retira da mulher a possibilidade de submissão a um procedimento médico seguro. Não raro, mulheres pobres precisam recorrer a clínicas clandestinas sem qualquer infraestrutura médica ou a procedimentos precários e primitivos, que lhes oferecem elevados riscos de lesões, mutilações e óbito."

Início da vida

"De um lado, [há] os que sustentam que existe vida desde a concepção, desde que o espermatozoide fecundou o óvulo, dando origem à multiplicação das células. De outro lado, estão os que sustentam que antes da formação do sistema nervoso central e da presença de rudimentos de consciência – o que geralmente se dá após o terceiro mês da gestação – não é possível ainda falar-se em vida em sentido pleno."

"Não há solução jurídica para esta controvérsia. Ela dependerá sempre de uma escolha religiosa ou filosófica de cada um a respeito da vida. Porém, exista ou não vida a ser protegida, o que é fora de dúvida é que não há qualquer possibilidade de o embrião subsistir fora do útero materno nesta fase de sua formação. Ou seja: ele dependerá integralmente do corpo da mãe."

Acompanharam o voto de Barroso, os ministros Rosa Weber e Edson Fachin.    Ainda no voto do ministro Barroso, segundo a Folha de São Paulo, foi destacado que "(...) os principais países democráticos e desenvolvidos, como Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido, Canadá, França, Itália, Espanha, Portugal e Holanda, não criminalizam o aborto na fase inicial da gestação. O prazo de três meses foi tirado da comparação com esses países.".  Sim, ao contrário do que muitos Pró-Vida afirmam, o direito de interrupção da gravidez em países que permitem o aborto segue regras e coisas como abortar aos nove meses (*Trump soltou uma dessas em um dos debates com Hillary Clinton*), é fruto da ignorância, ou mentira deliberada.

De qualquer forma, apesar do aspecto positivo para os direitos das mulheres desta decisão, não representa o Supremo como um todo.  Como bem esclareceu o site AZMina, uma turma tem 5 ministros, não 11, como o STF.  Os ministros Marco Aurélio e Luiz Fux votaram pela liberdade dos presos, mas não se pronunciaram sobre o aborto.  De qualquer forma, a decisão acendeu a luz vermelha no Congresso e o ilustríssimo presidente tampão, Rodrigo Maia (DEM), no meio da madrugada, criou uma comissão especial para discutir a questão e a pertinência da decisão do Supremo que, segundo ele, está legislando.  
Trocando em miúdos, o Congresso está questionando a competência do Judiciário em decidir o que é, ou não, constitucional, afinal, é preciso atender à bancada evangélica e outros religiosos (*O Estatuto do Nascituro, por exemplo, é de autoria de um deputado espírita kardecista*).  São os tempos tenebrosos que vivemos.  Enfim, o medo é que no próximo dia 7, o plenário do Supremo conceda o direito de aborto para mulheres infectadas pelo vírus da zika.  Resumindo, foi uma vitória do bom senso, mas só mesmo em um país enlouquecido, como está o nosso, alguém poderia afirmar que o aborto foi descriminalizado em nosso país.  Gerou-se um precedente, mas precedente pode não produzir legislação.  Obviamente, a decisão de Barroso e sua fala foram impressionantes.

Ainda falando de aborto, o Papa Francisco, essa criatura que estranhamente deve ser o líder progressista mais importante do mundo hoje, autorizou o clero católico a conceder o perdão para mulheres que abortaram.  "Como assim?  Ele não tem o direito de decidir..."  Calma, tente entender que, para muitas mulheres católicas, esse ato papal é um alento.  Tente compreender, também, que no momento em que vivemos e levando-se em consideração as condições de produção do próprio Francisco, este seu ato mostrou uma compassividade além do esperado.  Ele não virou pró-escolha, obviamente, mas assumiu uma postura pró-acolhimento.  Tenham certeza que ele só ganha o ódio de muita gente dentro da próprio Igreja ao tomar atitudes assim.  Enfim, eu me surpreendi e achei um passo e tanto, isso não o torna feminista, nem obriga nenhuma feminista a ver o papa como um sujeito legal , ou autoridade na sua vida, só para refletir na importância simbólica do ato. 

De escandaloso e absurdo nesses casos é que sempre homens estejam decidindo o que as mulheres devem fazer com seus corpos, com seus úteros.  Só por isso, já tiramos o quanto de desigualdade e tutela ainda havemos de vencer.  Eu tenho uma menina de três anos, que foi desejada desde o primeiro momento, e gostaria muito que ela chegasse a sua idade reprodutiva sem ter que se preocupar com imposições estatais absurdas fruto da pressão de (falsos) moralistas e religiosos sobre suas escolhas, no máximo, que tivesse que se entender com sua própria consciência.  É pedir muito?

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